domingo, maio 08, 2005

Rawls-Keynes, Bentham e a esquerda caviar, etc.

Caro João Galamba,

- Em primeiro lugar, muito obrigado pela sua constante presença naquilo que escrevo. Gostava de ter tempo para lhe responder, mas, na maior parte das vezes, não tenho qualquer hipótese. Tenho que escrever para aqueles sítios que garantem o meu ganha-pão. Mas hoje é domingo… Já agora: como é que está a “nossa” LSE?

- Claro que Keynes e Rawls podem ser colocados no mesmo saco. Sim, um era economista e outro era filósofo político. Mas ambos são os dois monstros sagrados do “social liberalism” ou, se quiser, do “liberalismo contemporâneo”. John Rawls tentou (e conseguiu) redignificar o “Welfare State”. O Welfare deixou de ser apenas um instrumento político-económico e passou a ser a consubstanciação de uma teoria político-moral. Rawls, se quiser, reforçou a retaguarda de Keynes. Se não me engano, Fernando Gil percepcionou Rawls exactamente neste sentido: a teoria da justiça colocou-se a montante do Welfare e deu-lhe protecção ideológica.

- Volto a insistir: a ética de Bentham está enraizada nas “esquerdas caviares” que nasceram dos escombros do marxismo. Desde o aborto até ao regime escolar, os discursos das novas esquerdas são sempre marcados pela seguinte máxima: evitar a todo o custo a “dor” física e, sobretudo, mental do indivíduo. Na escola, por exemplo, não se pode ensinar nada difícil, pois isso, dizem as sumidades, causa angústia aos meninos. Por isso, não se pode dizer que “sequesso” não é “sexo” e que “k” não é “que”.

- Não se trata de mais ou menos pureza. Eu sou liberal clássico e, como tal, só posso ter duas reacções em relação à deriva pós-Bentham do liberalismo: (a) discordar na susbtância; (b) a minha discordância não me impede de ficar fascinando com esta evolução. Aliás, estudar esta evolução é fundamental para a compreensão dos últimos 200 anos.

- Com todo o devido respeito, acho que está equivocado. O conceito de “cidadão” nasceu com o liberalismo clássico. O “O Federalista” de Madison e Hamilton é isso mesmo: a criação de um espaço de cidadãos. Kant (outro liberal clássico) ao estabelecer o direito cosmopolita (os “estrangeiros” têm os mesmos direitos dos “nacionais”) estava a criar um espaço para cidadãos legais e não para membros de uma dada comunidade (a maior miséria intelectual alemã foi, precisamente, a ruptura romântica com o legado kantiano). Ora, Rawls fez uma espécie de up-grade: para Rawls, o cidadão, além dos direitos políticos, deve ter direitos económicos (mas isso, meu caro, começa em Green, senão em Bentham).

- Calma: o empirismo não tem nada a ver com o utilitarismo. O empirismo está relacionado com o nível epistemológico e não com o nível epistémico. O empirismo tem a ver com o seguinte: estudar os homens no seu habitat natural (a história); isto é, devemos evitar os conceitos abstractos, esses conceitos que nos esmagam com a maiúscula. Mais do que ninguém, Hume percebia o seguinte: há homens e o HOMEM é uma pretensão perigosa. O utilitarismo, ao invés, é uma solução epistémica, substantiva. É uma moral e não uma forma de apreender o mundo.

Um abraço,
Henrique Raposo

9 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Parece que o menino Rapozito estudou bem a lição. Faltaram é algumas aspas nas (várias) citações que aí tem no seu post. Já agora, gostava de saber se o sr.Galamba se fica com esta, ou se vai dar uma resposta à altura :)
Obrigado obrigado

4:04 da tarde  
Blogger Joao Galamba said...

A "nossa" LSE está óptima e o Beavers Retreat entrou na "saison"...
Sem pretender comentar o seu post na totalidade, deixo-lhe (te?) algumas reflexões:

1) O empirismo de Hume está relacionado com o utilitarismo na medida em que defende um conceito de Razão Instrumental, Calculativa (os sentimentalistas ingleses, ou serão escoceses?Hutchenson e companhia) sao os percursores do utilitarismo. Quando se dá o desencantamento do mundo a razão deixa de ser substantiva, e verdades morais ou a objectividade da moral deixam de ser possíveis (eu discordo disto e sou tudo menos utilitarista, mas isso é outra conversa). Por exemplo a dualidade facto-valor (que eu rejeito) torna-se possível com Galileu, Descartes, Hume, Kant, Bentham (sempre em cadeia, sem sugerir causalidades...). Sobre isto recomendo (se ainda não leu) o Sources of the Self do Charles Taylor (livro fascinante, magnus oppum de um autor no qual encontro alguma inspiração).

2) Quando falei do Cidadão quis apenas recordar que nem todos os liberais que menciona usavam o conceito de cidadão (não me parece que Burke -de quem sei pouco, reconheço- se revisse na constituição americana). O que quis dizer foi que aquilo que alguns gostam de chamar como o verdadeiro ou puro liberalismo é muitas vezes reacionarismo e defesa dos privilégios da aristocracia contra o poder real (acho que Burke cairia nesta caracterização-gostava que me corrigisse, se estiver errado). O conceito de cidadania e o government by the people tem muito pouco a ver com o liberalismo ingles (pois involve o conceito de democracia e de soberania popular) tradicional: mistura liberdade negativa e positiva (eu acho que esta dualidade ajuda muito pouco, mas isso é outra história)

Bem fico-me por aqui. Obrigado pela resposta que deu no post.
Abraços
Joao

5:58 da tarde  
Blogger Joao Galamba said...

Quanto à relação entre Rawls e Keynes concordo com o que escreve (s). Mas acho que alguém que considera que o homem é um autonomous chooser of ends e cuja preocupaçao foi combater o utilitarismo como teoria moral não pode ser comparado com Bentham.
Exemplo: homossexualidade. Podemos fazer uma defesa utilitarista (não há prazeres errados) ou Kantiana (não podemos infringir a liberdade dos outros em escolher os seus próprios fins), mas são posições distintas...
Eu revejo-me no que diz o Rorty: for liberals cruelty is the worst thing a liberal can do (e este cruelty não tem de ser utilitarista).
E já agora eu sou Wittgenstiniano, Heideggeriano, Rortyniano e Taylariano e ando a ver se consigo compatibilizar os quatro...sem utilitarismos...
Abraços, de novo

6:04 da tarde  
Blogger Joao Galamba said...

"Desde o aborto até ao regime escolar, os discursos das novas esquerdas são sempre marcados pela seguinte máxima: evitar a todo o custo a “dor” física e, sobretudo, mental do indivíduo. Na escola, por exemplo, não se pode ensinar nada difícil, pois isso, dizem as sumidades, causa angústia aos meninos. Por isso, não se pode dizer que “sequesso” não é “sexo” e que “k” não é “que”."

Concordo na totalidade! E tenho duas atitudes: rio-me (dessa esquerda politicamente correcta)e preocupo-me, mas não sei que fazer para além disso...
Mas a esquerda não tem de ser isso...espero eu (caso contrário mudo-me para a direita ou invento outra denominação)

6:09 da tarde  
Blogger Henrique Raposo said...

Caro João,

- Podes tratar-me por “tu”. Aliás, seria eu que deveria estar a perguntar (tenho 25 anos).

- Infelizmente, não tenho tempo para mais do que o seguinte (estou a preparar um texto sobre Sebald. Aliás, um texto que, estou certo, vai-te interessar bastante): acho que, de facto, estás a percepcionar Burke de forma errada; usando quatro adjectivos (tal como fizeste), diria que sou maquiavélico, hobbesiano, burkeano e madisoniano.

6:18 da tarde  
Blogger Joao Galamba said...

Sem te querer maçar, e porque vou fazer 29 anos gostava que me tratasses por Sua Senhoria. (como não sei pôr aqueles smiles pirosos, digo que isto é obviamente a gozar).
Quando tiveres tempo -e se te apetecer- gostava que comentásses algumas das coisas que escrevi. Sobre Burke sei pouco (para não dizer nada), mas li um livro interessante sobre Hegel em que se comparava as posições deste último (defendendo-o das acusações de conservadorismo, pai espiritual do nacionalismo, etcs...) com a de alguns liberais. Burke não saía muito bem, mas como o gajo que o escreveu é um Hegeliano, é natural...
Seguro que volteremos a falar, fica aqui o meu abraço.
Joao

6:37 da tarde  
Blogger Joao Galamba said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

10:13 da tarde  
Blogger Joao Galamba said...

Sei que já me estou a esticar, mas, se não me engano,antes de Green, Hegel também falava de direitos económicos para além dos políticos...(agora não tenho a certeza, mas acho que sim)
Abraços (juro que acabo aqui

10:14 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

João e Henrique,
Continuem. É óptimo que o blogue tenha espaço para a discussão ideológica, ontológica e até epistemológica sobre a ciência política.

4:25 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home