segunda-feira, junho 06, 2005

Que Europa para a França?



O Nobel da Paz e eurodeputado John Hume (citado em The United States of Europe, T. R. Reid), descreveu a União Europeia como “the best exemple of conflict resolution in the world. Europe made a conscious decision to leave war and differences behind”… numa fórmula que remonta a Churchill que em 1946 afirmava peremptoriamente que “o primeiro gesto de reconstrução da família europeia deve ser a aliança entre a França e a Alemanha”.
A pacificação da “questão alemã”, incluída num contexto de détente bipolar concede ao propósitos da NATO proclamados pelo Lord Ismay(“to keep the russians out, the americans in and the germans down”), um carácter multiusos, de fácil adaptação à génese da integração europeia. É um crasso erro histórico abstrair o patrocínio norte-americano da origem da construção europeia. Desde Marshall a George Ball, passando pelo Grande Desígnio de Kennedy, sucessivas administração americanas escolheram abstrair-se de Herold von Cleveland e outros que apontavam uma Europa integrada como um poder concorrente, e incentivaram a emergência de uma Europa integrada numa estratégia de unidade Ocidental.
O conforto securitário proporcionado pela NATO permitiu e incentivou um encontro de vontades continentais motivadas pela necessidade de sobrevivência económica e industrial onde o eixo franco-germânico funcionava na forma de um complemento de necessidades industriais primárias numa estratégia enfatizada por Tony Judt (The Great Illusion).
As aspirações a uma integração política que completasse a integração económica no seio do eixo franco germânico sobreviveram até de Gaulle e à sua defesa do Estado-Nação como única entidade autorizada no sistema internacional, propondo uma Europa confederada e força inesperada de um sistema tripartido e de um Ocidente bipolar.
Enquanto que o “não” holandês pode ser interpretado como uma recusa de um quotidiano social que deve mais à sua opção por um multiculturalismo de compartimentos não dialogantes e recorda a oposição de Thatcher ao volume de participação britânica no orçamento comunitário, o “non” francês é um grito maníaco-depressivo que ecoa da ala psiquiátrica dos Invalides.
É curioso notar a actualidade de Raymond Aron acerca da do debate francês em 1954 sobre a CED : “a Assembleia Nacional recusava a ratificação de um projecto de iniciativa francesa, sem mesmo lhe conferir a honra de um debate” (La querelle de la CED).
Ao contrário do quotidiano de Raymond Aron, a presente recusa francesa, agora em forma de referendo, ao Tratado Constitucional é sinónimo de angústia existencial. Recuso em considerá-lo sectorial, a sua essência é global a uma sociedade civil capitalizada pela periferia política. Ontológicamente é sinónimo do crespúsculo nostálgico de La France, coligado com laivos gaullistas de sobrevivência.
Tal como Raymond Aron, também Alian Raoux e Alian Terrenoire (A Europa e Maastricht) conservam a sua intemporalidade, ao descreverem o debate francês de 92 como : “é quase uma guerra religiosa, é o caso Dreyfus, é Maio de 68 com barricadas de palavras...A França terá vivido durante alguns meses uma psicose irracional...”. Entre 92 e 2005 discorre o acentuar da depressão pós-parto colonial, da nula mobilidade laboral francesa num mercado progressivamente global, suportada por uma classe política em regime de sobrevivência.
Engana-se quem aspira à magnitude constitucional, quase literária, de Filadélfia, mas o presente Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa não é um texto para ser declamado em público. Dificilmente será um marco constitucional, mas representa em conjunto com Maastricht, Amsterdão e Nice mais um passo para a racionalização institucional necessária a uma Europa em alargamento. Representa, igualmente, uma Europa com aspirações a actuar de pleno direito no sistema internacional, numa lógica que nasceu constitucionalmente com a inclusão da PESC entre os “3 Pilares” de Maastricht.
Mas este “não” francês, tal como a sua iminência em 92, não é a simples recusa de um Tratado Constitucional é a expressão da tentativa desesperada de salvaguarda de um modelo eurocêntrico e francófono numa Europa de feição cultural e social progressivamente atlântica. Bernardo, estiveste bem em recordar o excepcionalismo gaullista, mas penso que este extravasa o simples palco das Relações Internacionais. O “não” francês provém, igualmente, de uma nação que nunca percebeu porque Johnny Halliday nunca foi um sucesso de vendas mundial. É a nostalgia de uma belle- époque e a proclamação de um suposto modelo de coesão social que inverteu a sua ordem natural.
Qualquer modelo de coesão social terá de ter por base financiadora uma economia de mercado dinâmica, suportada por uma força laboral competente e preparada para um mercado global. Inverter a ordem da equação resulta na auto-exclusão de ambas as prioridades, da mesma forma que subverter a feição atlântica da Europa resultará na negação da sua essência originária.
Num contexto estritamente institucional, a morte anunciada do Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa poderá significar a supressão momentânea de intentos federalistas de supranacionalidade em prol da presente intergovernamentalidade; o fim da crença no neo-neo funcionalismo de Sandholtz e Zysman; na validade do modelo de spillover económico e político, adaptado ao alargamento da União, e na dúvida acerca de iniciativas em curso como os battle-groups e deixando conturbado o futuro das missões Petersberg segundo a Headline Goal, que asseguram a constituição de uma força de disposição rápida europeia. Mas haverão outras consequências.
A não ratificação do tratado resultará, igualmente, na estagnação da integração europeia no sistema internacional segundo as directivas da Estratégia de Segurança Europeia (ou “Documento Solana”) e na continuidade de uma multiplicação de focos opinativos rodeados por uma periferia geográfica progressivamente mais hostil.


3 Comments:

Blogger Henrique Raposo said...

Ainda não li. Mas um obrigado entecipado pela dimensão. viva o post grande. viva o lençol.

HR

7:53 da tarde  
Blogger Gonçalo Curado said...

Ando a tomar Centrum e só me sai esta dimensão intelectual! Sempre houve janta?

Um abraço

7:58 da tarde  
Blogger Henrique Raposo said...

- Sim: eu, o Bernà e o Francisco

- Pérolas: «O “non” francês é um grito maníaco-depressivo»

«O “não” francês provém, igualmente, de uma nação que nunca percebeu porque Johnny Halliday nunca foi um sucesso de vendas mundial».

A meu ver, a coisa resolvia-se assim: colocar Habermas no baú e retirar desse mesmo baú o nosso Kant. Seria lindo, brilhante e eficaz.

8:03 da tarde  

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