sábado, fevereiro 26, 2005

Espaço Rebelo de Sousa-Da força da técnica à técnica e à força coligadas

Obra essencial para a compreensão das opções estratégicas militares contemporâneas. Presença habitual na International Security e professor no US Army War College, desde o seu artigo “Victory Misunderstood. What the Gulf War Tells Us About the Future of Conflict ”, que Sephen Biddle tem marcado o passo no debate estratégico e sua mais recente obra Military Power –Explaining Victory and Defeat in Modern Battle é apenas mais uma etapa nesse sentido.
A Guerra Anglo-Boer com o fim das investidas suicidas em campo aberto face à inovação das trincheiras e do arame farpado; e a Guerra Russo-Japonesa onde a vitória japonesa se deve à sua valorização tecnológica ofensiva (armas automáticas e artilharia sincronizada de longo alcance) contra o numeroso mas paupérrimo exercito czarista, haviam já demonstrado a vantagem militar da revolução tecnológica, mas será a I Guerra Mundial que apresentará o campo de batalha à contemporaneidade. É nesta “Guerra Total” que a tradicional historiografia militar coloca uma barreira temporal e Biddle não foge à regra. No entanto a doutrina clássica personificada em
T.H.E. Travers e Michael Howard remete-nos para a obra de Ivan (ou Jean) de Bloch, financeiro polaco que em 1898 publicou La Guerre Future; aux points de vue technique, economique et politique, antevendo uma realidade bélica novecentista delineada pelos benefícios da Revolução Industrial, financiada pela vitalidade económica de 1890 e remetida para tácticas de “análise operacional moderna” onde a tradição das “batalhas decisivas” era substituída por uma guerra de desgaste político, técnico, humano e económico.
A partir de Bloch e até hoje, a ênfase radica no poder de fogo e na capacidade técnica das potências beligerantes, desaparecendo o predomínio das teorias do número, do carácter e da estratégia que recordam von Clausewitz. E é aqui que Sephen Biddle se distancia da doutrina dominante.
Para Biddle a relevância não está no número de operativos ou de efectivos militares, na presença tecnológica ou nas capacidades económicas de um Estado, mas na pureza da táctica e no seu diálogo íntimo com as capacidades militares de um exército. A sua teorização, omissa quanto à disposição naval ou aérea e limitada a situações de “high-intensity conflict” (não abrangendo cenários de guerrilha ou de guerra urbana) é fulgurante e original ao enfatizar a necessidade de uma disposição racional e equilibrada das capacidades ofensivas e defensivas, onde os níveis de disposição das forças guardam a chave para a vitória.
Este é o seu “sistema moderno”, onde em situação defensiva se deverá recorrer à concentração das forças à distância de segurança, dando ao oponente uma margem lata de progressão territorial, mas sempre em prontidão para um contra-ataque de oportunidade; enquanto que na ofensiva o segredo está na exploração pária do poder de fogo da artilharia contrária, avançando em grupos reduzidos mas coordenados que, deduzo, explorariam as reticências inimigas a uma situação de fogo cruzado.
No pragmatismo e na simplicidade do seu “sistema moderno” não há lugar para grandes concentrações de fogo “tecnológico” de artilharia, mas antes uma dispersão racional de forças por pontos chaves, colocando-se a tónica, deduzo novamente, na estratégia de incursão em vez de na força despendida. Esta é uma lógica que Biddle suporta socorrendo-se de recriações vituais, computadorizadas, de situações de combate e pelo recurso a três batalhas chave: a Operação Desert Storm de Janeiro/Fevereiro de 1991; a Operação GoodWood de Julho de 1944 e a II Batalha do Somme em Março/Abril de 1918
.


. .
Somme ; Goodwwood ; Desert Storm
Na realidade, é esta última e no sucesso do ataque alemão às linhas defensivas aliadas que Biddle procura apresentar como o sustento do seu argumento de disposição racional das forças em situação de inferioridade numérica ofensiva. Mas também é aqui que o leitor fica curioso. Não tanto por esta ser uma ofensiva secundária no contexto final da I Guerra Mundial, até algo ausente das mais recentes narrativas de Niall Ferguson, John Keegan ou de Liddell Hart ou pelo facto da iniciativa ter estado do lado alemão em situação já de “desespero”, mas por ser a II batalha, obrigatoriamente precedida por uma I. E conhecer a I ofensiva do Somme abre óbvias brechas no “sistema moderno” do Biddle.
Já no quotidiano de impasse em Verdum , a I ofensiva do Somme nasce na Conferência Aliada de Chantilly de Dezembro de 1915 e do difícil diálogo franco britânico entre a perpectiva de “war of attrition” do General Joffre e a teoria de uma ruptura decisiva das linhas inimigas do Estado-Maior de Haig e representará o fim do familiar e voluntário “Kitchener’s Army” e a conclusão da estratégia de ataques decisivos e sincopados que havia ganho corpo nas ofensivas de Outono em Artois e na Champagne.
A estratégia da I ofensiva do Somme, em teoria, era algo inovadora e partida da fase prévia de uma semana de contínuas descargas de artilharia pesada que destruiriam as trincheiras, o arame farpado e os nichos de artilharia inimiga, após a qual a infantaria, em estratégia de creeping barrage (onde a artilharia devasta o terreno metros à frente da infantaria, criando espaço para a progressão desta) deveria romper as linhas alemãs e abrir caminho para uma tranquila marcha aliada de ataque aos flancos alemães desprotegidos, bem como para a tomada da povoação e obrigando à regressão e fragmentação das linhas alemãs.
A realidade, no entanto, criou um cenário bem diferente. Com a artilharia aliada dependente da locomoção ferroviária e a uma distância demasiado acentuada para ter precisão de tiro e com o nevoeiro matinal a impedir um reconhecimento aéreo, o optimismo do avanço britânico não se concretizou.
A inexistência de um trabalho prévio de colocação de minas subterrâneas em toda a extensão da linha alemã permitiu que inúmeros abrigos subterrâneos e nichos de armas automáticas alemães sobrevivessem ao ataque da artilharia. Quando a infantaria britânica ultrapassou e passa a linha defensiva alemã, os nichos defensivos alemães envolveram-na numa bolsa de tiro fatal onde o avanço significaria o confronto com as reservas germânicas e a retirada a sujeição ao varrer das armas automáticas alemãs que, entretanto, haviam liquidado qualquer ímpeto de uma segunda ofensiva aliada.
Este é um cenário que questiona seriamente o “sistema moderno” de Biddle, assente na progressão em profundidade de grupos isolados de infantaria suportada pelo poder de fogo combinado da artilharia. No fundo é um regresso ao modelo estático de creeping barrage com a única originalidade de substituir um ataque maciço da infantaria por uma divisão em pequenas unidades de combate. O objectivo é óbvio e passa pela a abertura de várias brechas nas linhas defensivas e pela multiplicação de flancos de ataque, deixando, porém, em aberto a demasiada confiança na táctica e na capacidade do fogo de artilharia à distância, bem como não apresenta soluções para situações de retirada inimiga ou para uma opção desta pela guerra de guerrilha, onde o “sistema moderno” não tem lugar. Por isso é curioso que Biddle apresente, em Julho de 2004, a operação Desert Storm de 1991 como o maior caso de sucesso contemporâneo do seu sistema moderno e não o Afeganistão ou a mais recente intervenção no Iraque. Ainda assim, a sua obra não deixará de fazer sentir o seu impacto tanto no debate académico, como na racionalização de orçamentos de Defesa e no delinear de estratégias militares de disposição de forças e do tamanho destas.