domingo, novembro 27, 2005

A brigada do despertador


Caro Daniel,

Tinha prometido ao neurónio que não escreveria hoje, mas o tamanho do seu comment merece uma resposta respeitosa.

1. Negri não cita Marcuse? Pois não. É esse um dos problemas dos actuais gurus do radicalismo: não citam as suas “fontes”. Tariq Ali não gosta de notas de rodapé. Chomsky rouba descaradamente tudo, desde Said a Wallerstein, e, depois, afirma as coisas como se fossem a “verdade revelada a um linguista”.

2. Parecem-me evidentes as semelhanças entre a “Multitude” de Negri e o desejo de Marcuse expresso no “One Dimensional Man”:

Debaixo da base popular reaccionária existe um substrato de revoltados e excluídos, os explorados e os perseguidos de outras raças e cores … existem à margem do processo democrático … e porque estão a começar a recusar fazer o jogo pode ser o sinal de que o início do fim deste período.

O que é a “Multitude” senão isto? A Multitude de Negri é Marcuse em jargão pós-moderno. O facto de Y não citar X, não me impede de comparar e dizer, sem pejo, que há influências de X em Y, sejam elas confessadas ou não. O risco da interpretação é meu. A pertinência da mesma será medida pelas reacções…

3. Em relação ao carácter despótico de Marcuse... Bom, as minhas palavras são chuvinha quando comparadas com esta enxurrada do maior especialista das ideias “marxistas”:

Podemos reduzir o trabalho de Marcuse a uma sociedade governada de forma despótica por um grupo de iluminados ou nos nossos dias, Marcuse é o filósofo que merece ser descrito como o ideólogo do obscurantismo. (Leszek Kolakowski).

4. V. fica espantado com o facto de alguém considerar Marcuse como totalitário? Bom, eu pensava que a História do século XX tinha desmascarado, em definitivo, o mecanismo das Utopias Totalitárias. Mas, a cada dia que passa, tenho a impressão que os homens são imunes às lições da História. Porquê? Porque andam sempre à procura da História que há-de vir quando deveriam prestar atenção à verdadeira História, aquela que já passou.
E o tal mecanismo das Utopias Totalitárias é este, meu caro Daniel: os piores (ou melhores…) totalitários são aqueles que, como Marcuse, proclamam uma Liberdade em abstracto. Uma LIBERDADE tão grande, um BEM tão excelso, que, na prática, implica a destruição dos outros, daqueles chatos que não concordam com esse Bem. O totalitário proclama o Bem do AMANHÃ enquanto mata, aqui, no PRESENTE. Sim, Marcuse era um totalitário. E dos bons.

5. Marcuse considerava o Direito que governa as democracias como “tolerância repressiva”. Até lhe digo mais: esta ideia de Marcuse passou para o Biopoder de Foucault e é, hoje, o tal Biopolítico de Negri (ou também acha que não há Foucault em Negri?). Marcuse, Foucault e Negri reduzem os sistemas demo-liberais a uma caricatura: o Poder engana as pessoas, criando uma ilusão de liberdade e de direitos que, na verdade, são mentiras, falsas consciências; um poder sedutor que tiraniza sem parecer que tiraniza; um poder difuso, que vem de dentro, do próprio corpo. Em suma, uma gigantesca teoria da conspiração. E quem é que vai desmascarar esta máquina de mentira? Quem é que vai ser o glorioso despertador das massas? Claro, os próprios: Marcuse, Foucault e, agora, Negri, a brigada do despertador. Não, muito obrigado. Já tenho um. E funciona bem. Toca todos os dias.

6. A dita e malvada tolerância repressiva foi colocada, por Marcuse, em oposição à redentora e verdadeira Tolerância, que não era mais do que intolerância repressiva sobre aqueles que não seguissem o ideal de libertação libidinoso de Marcuse. Marcuse queria formar uma espécie de brigada de estudantes, povos do terceiro mundo e minorias étnicas. Objectivo? Destruir o Ocidente e devolver o Eros à Humanidade. Sabe, Negri, no último livro, fala de Drag Queens como arma política contra o tal Poder... Que é isto senão Marcuse?

Mas esteja descansado, isto vai aparecer, algures, numa revista perto de si.

Um abraço,
HR

9 Comments:

Blogger Joao Galamba said...

Sem querer usar o apito ou pisar a linha, acho que es injusto com o Foucault. Se ha algo que ele nunca (NUNCA) diria e' que ele estava ai para liderar ou despertar as massas. Se ha alguem a esquerda que criticou o Marxismo e logicas de vanguarda foi o gajo. A obra dele representa a derrota final (se concordarmos com o que ele disse) de todas as utopias emancipadoras das esquerda. Ele e o oposto do totalitarismo, ele e o autor por excelencia do anti-totalitarismo. Ele e tao anti-totalitario que absolutizou o Poder e tornou-o constitutivo da sociedade. Ele e ontologico e inultrapassavel.

Nao ha liberdade que se opoe ao poder. O poder e difuso. positivo e negativo, mas ele existe sempre e necessariamente em qualquer relacao. Ele e consitutivo. Os senhores de Frankfurt, o Habermas e toda a esquerda que ainda acredita nesse ideal nao podem identificar-se com o Foucault.
Nao conheco o suficiente de Marcuse para dizer se ele e ou nao uma grande influencia para o Negri, mas ha uma outra pessoa que e: Deleuze com os seus fluxos sensualistas.

Um abraco,
Joao

10:21 da tarde  
Blogger Joao Galamba said...

...logo o Foucault nunca pode ser associado a teorias da conspiracao que a esquerda usa e abusa. O poder e sistemico, difuso, e plural. Nao ha burguesia nem Multinacionais a gerir os destinos do mundo (isso e a logica de poder que ele critica e desvaloriza)

Um abraco,
J

10:23 da tarde  
Blogger Henrique Raposo said...

João,

Não liguei Foucault ao Marxismo. Liguei este "marxismo" de Negri a Foucault. É diferente. Nem nunca liguei Foucault a Habermas. Seria um absurdo.

Negri não é marxista. Não pode ser. Se X usa Foucault, então, X anula qualquer marca iluminista.

O despertar das massas não passa apenas pelo marxismo e pela Esquerda clássica. Na história da sexualidade, Foucault tem uma carga de revolta, de emancipação. E Negri percebeu isso. O Despertar não vem só no marxismo.

Foucault adorava violência contra o status. Adorou, por exemplo, a revolução iraniana de 1979. Foucault também queria despertar. Não as massas do marxismo. Mas também queria.

Deleuze? Claro. Há uma passagem em "O que é a Filosofia" que é uma base evidente da Multitude: «O povo por vir ... "povo-massa, povo-mundo, povo-cérebro»

abraço,
HR

10:34 da tarde  
Blogger Henrique Raposo said...

Desculpa, mas não concordo. O "biopoder", esse poder difuso e incerto, é que é perfeito para o clima conspirativo, cheio de estruturas que ninguém vê mas que tudo controlam. As teses básicas de Chomsky (multinacionais) é coisa para meninos. Em Negri, sim, há uma verdadeira e inteligente construção de uma teoria conspirativa, onde não há sequer exterior ao "Império".

10:38 da tarde  
Blogger Joao Galamba said...

Mas nao te esquecas que elas nao controlam elas constituem (nao ha nada que elas reprimam). Ninguem as controla, nao ha comites da burguesia nem senhores de wall street. Elas criam o contexto onde nos podemos ser o HR o JG, o medico, o homossexual...elas sao acima de tudo Ontologicas enao repressivas (mas o gajo e algo ambiguo e contraditorio no que diz)

O Foucault e muito ambiguo e eu acho que o projecto dele e contraditorio (a ideia de tornar cada um num projecto estetico em que alguem se auto-recria, parece-me contraditorio com quase tudo o que ele escreveu)e vazio.

Eu gosto do Foucault por ele ter revelado que saber e razao sao poder e desmascarado alguma ingenuidade (e arrogancia) do Iluminismo. Agora tambem acho que a nocao dele de poder nao tem qualquer relevancia normativa. Politicamente e quase (embora tenha coisas muito interessantes) vazio.

Quanto a Rev. Iraniana a posicao dele tem sido muito debatida. Mas nao te esquecas que no inicio muitos a apoiaram. Eu estive no Irao este Verao e falei com muita gente (liberais, esquerdistas, fundamentalistas, apoliticos...). A ideia com que fiquei foi que a grande parte da sociedade iraniana apoiou a revolucao (na sua fase inicial) porque pensava que o Khomeini nao ia ficar no poder, mas que apenas tencionava derrubar o Xa (que ha que reconhecer nao era um santo, longe disso). Nao sei em que fase e que o Foucault apoiou a Rev e nao acredito (posso estar, obviamente enganado) que ele se revisse no que o Khomeini fez aquele pais (cuja visita recomendo vivamente)

Um abraco,
Joao

11:11 da tarde  
Blogger Joao Galamba said...

Ja agora da uma olhada a ultima coisa que o Zizek escreveu sobre o Imperio. Encontrei-a via Political Theory Daily (excelente site)

http://www.lacan.com/zizmultitude.htm

Eu percebo a intencao do Negri que e recuperar uma certa dimensao de poder politico face a um mundo global em que as categorias tradicionais deixaram (segundo ele) de fazer sentido. Eu sou mais "conservador" e nao consigo imaginar grande politica nesses quadros da multitudes globalis e muito menos quando elas envolvem procissoes de gajos vestidos de palhacos e montras partidas. Mas o problema para quem acredita na dimensao democratica do self-rule, existe.

Acho que os outros que tentam lidar com o mesmo problema -os cosmopolitan theorists e os seus Kantianismos- tambem nao vao muito longe.

Um abraco,
Joao

11:46 da tarde  
Blogger Joao Galamba said...

"Consequently, when Negri and Hardt repeatedly emphasize how "this is a philosophical book," and warn the reader "do not expect our book to answer the question, What is to be done? or propose a concrete program of action," 9 this constraint is not as neutral as it may appear: it points towards a fundamental theoretical flaw. After describing multiple forms of resistance to the Empire, Multitude ends with a messianic note pointing towards the great Rupture, the moment of Decision when the movement of multitudes will be transubstantiated the sudden birth of a new world: "After this long season of violence and contradictions, global civil war, corruption of imperial biopower, and infinite toil of the biopolitical multitudes, the extraordinary accumulations of grievances and reform proposals must at some point be transformed by a strong event, a radical insurrectional demand." 10 However, at this point when one expects a minimum theoretical determination of this rupture, what we get is again withdrawal into philosophy: "A philosophical book like this, however, is not the place for us to evaluate whether the time for revolutionary political decision is imminent." 11 Negri and Hardt perform here an all to quick jump: of course one cannot ask them to provide a detailed empirical description of the Decision, of the passage to the globalized "absolute democracy," to the multitude that rules itself; however, what if this a justified refusal to engage in pseudo-concrete futuristic predictions masks an inherent notional deadlock/impossibility? That is to say, what one does and should expect is a description of the notional structure of this qualitative jump, of the passage from the multitudes RESISTING the One of sovereign Power to the multitudes directly RULING themselves. Leaving the notional structure of this passage in a darkness elucidated only by vague homologies and examples from the movements of resistance cannot but raise the anxious suspicion that this self-transparent direct rule of everyone over everyone, this democracy tout court, will coincide with its opposite."

Slavoj Zizek, "Objet a as Inherent Limit to Capitalism: on Michael Hardt and Antonio Negri"

11:49 da tarde  
Blogger Henrique Raposo said...

obrigado pela indicação.

sobre o Irão e Foucault lê um artigo de "Reckless Mind" de Mark Lilla, um dos melhores americanos sobre estes assuntos, acho.

projecto de Foucault de reinvenção estética a cada momento? Eu acho - muita gente tb - que isso é a reinvenção do romantismo. faz este exercício: lê românticos do XIX e, logo de seguida, lê pós-modernos. é impressionante o grau de semelhança. um dos tipos que mais percebe disto Ihab Hassan diz qualquer coisa como isto: o EU romântico transformou-se na linguagem pós-moderna.

abraço

10:00 da manhã  
Blogger Joao Galamba said...

Henrique,

Tenho andado a debater Platonismos, Lei e Democracia com o RAF. Gostava que desses uma olhadela no post que escrevi e se te apetecer que participasses na discussao. Deixo-te aqui o link

http://ometablog.blogspot.com/2005/11/delimitacao-da-esfera-politica-e.html

Um abraco,
Joao

5:40 da manhã  

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