Caro Daniel,
Tinha prometido ao neurónio que não escreveria hoje, mas o tamanho do seu comment merece uma resposta respeitosa.
1. Negri não cita Marcuse? Pois não. É esse um dos problemas dos actuais gurus do radicalismo: não citam as suas “fontes”. Tariq Ali não gosta de notas de rodapé. Chomsky rouba descaradamente tudo, desde Said a Wallerstein, e, depois, afirma as coisas como se fossem a “verdade revelada a um linguista”.
2. Parecem-me evidentes as semelhanças entre a “Multitude” de Negri e o desejo de Marcuse expresso no “One Dimensional Man”:
Debaixo da base popular reaccionária existe um substrato de revoltados e excluídos, os explorados e os perseguidos de outras raças e cores … existem à margem do processo democrático … e porque estão a começar a recusar fazer o jogo pode ser o sinal de que o início do fim deste período.
O que é a “Multitude” senão isto? A
Multitude de Negri é
Marcuse em jargão pós-moderno. O facto de Y não citar X, não me impede de comparar e dizer, sem pejo, que há influências de X em Y, sejam elas confessadas ou não. O risco da interpretação é meu. A pertinência da mesma será medida pelas reacções…
3. Em relação ao carácter despótico de Marcuse... Bom, as minhas palavras são chuvinha quando comparadas com esta enxurrada do maior especialista das ideias “marxistas”:
Podemos reduzir o trabalho de Marcuse a uma sociedade governada de forma despótica por um grupo de iluminados ou
nos nossos dias, Marcuse é o filósofo que merece ser descrito como o ideólogo do obscurantismo. (Leszek Kolakowski).
4. V. fica espantado com o facto de alguém considerar Marcuse como totalitário? Bom, eu pensava que a História do século XX tinha desmascarado, em definitivo, o mecanismo das Utopias Totalitárias. Mas, a cada dia que passa, tenho a impressão que os homens são imunes às lições da História. Porquê? Porque andam sempre à procura da
História que há-de vir quando deveriam prestar atenção à verdadeira História, aquela que já passou.
E o tal mecanismo das Utopias Totalitárias é este, meu caro Daniel: os piores (ou
melhores…) totalitários são aqueles que, como Marcuse, proclamam uma Liberdade em abstracto. Uma LIBERDADE tão grande, um BEM tão excelso, que, na prática, implica a destruição dos outros, daqueles chatos que não concordam com esse Bem. O totalitário proclama o Bem do AMANHÃ enquanto mata, aqui, no PRESENTE. Sim, Marcuse era um totalitário. E dos
bons.
5. Marcuse considerava o Direito que governa as democracias como “tolerância repressiva”. Até lhe digo mais: esta ideia de Marcuse passou para o
Biopoder de Foucault e é, hoje, o tal
Biopolítico de Negri (ou também acha que não há Foucault em Negri?). Marcuse, Foucault e Negri reduzem os sistemas demo-liberais a uma caricatura: o Poder engana as pessoas, criando uma ilusão de liberdade e de direitos que, na verdade, são mentiras, falsas consciências; um poder sedutor que tiraniza sem parecer que tiraniza; um poder difuso, que vem de dentro, do próprio corpo. Em suma, uma gigantesca teoria da conspiração. E quem é que vai desmascarar esta máquina de mentira? Quem é que vai ser o glorioso despertador das massas? Claro, os próprios: Marcuse, Foucault e, agora, Negri, a brigada do despertador. Não, muito obrigado. Já tenho um. E funciona bem. Toca todos os dias.
6. A dita e malvada
tolerância repressiva foi colocada, por Marcuse, em oposição à redentora e verdadeira Tolerância, que não era mais do que intolerância repressiva sobre aqueles que não seguissem o ideal de libertação libidinoso de Marcuse. Marcuse queria formar uma espécie de brigada de estudantes, povos do terceiro mundo e minorias étnicas. Objectivo? Destruir o Ocidente e devolver o Eros à Humanidade. Sabe, Negri, no último livro, fala de Drag Queens como arma política contra o tal Poder... Que é isto senão Marcuse?
Mas esteja descansado, isto vai aparecer, algures, numa revista perto de si.
Um abraço,
HR